Era uma dessas noites frias de inverno. Os ventos uivavam
desfazendo a neblina pesada que pairava no nível das casas enquanto as luzes da
cidade ao fundo projetavam no pórtico imagens extraordinárias de plantas e
galhos de árvore embrenhados na névoa, retorcidos pelo vento. Do interior da
residência, apreciávamos a paisagem lúgubre através da porta principal de vidro.
Conversávamos na sala, embalados por uma ou outra dose de álcool – mas decerto
nenhum de nós havia se excedido a ponto de creditar-se o que ocorreria aos
efeitos relaxantes da bebida.
O tema da discussão era a troca de histórias do
desconhecido, de modo que talvez o que se sucedeu pudesse ser atribuído, isto
sim, às nossas mentes sugestionadas pelas narrações fantasiosas que se seguiam
– ou a um certo estado famélico, embora desconheça as implicações que um
estômago vazio possa causar quanto à visão de alucinações. Os mais atentos – e
impressionáveis – objetarão, neste ponto, contra meu julgamento antecipado do
fenômeno, atribuindo-o desde já a um desvario. Suspeitarão haver motivos
sobrenaturais naquilo que sequer foi narrado. Mas a história que se segue, e
que lhes conto agora, não é sobrenatural - por não haver indícios que apontem
neste sentido. Tampouco (acertaram os que discordaram) alucinação. O que
presenciamos naquela noite fora, portanto, real. E irrefutável.
Como disse, narrávamos histórias do oculto. Sendo o nosso
grupo razoavelmente heterogêneo, e como muitos de nós nos conhecíamos há pouco
tempo, os relatos eram em sua maioria inéditos para quem os ouvia. Farei, aqui,
uma ressalva que julgo importante: a escolha deste assunto um tanto sinistro
fora meramente eventual, e surgira naturalmente. Não houve, creio, da parte de
nenhum dos presentes a intenção deliberada de conduzir a conversa nos domínios
do pânico e do terror.
Pois bem. Entre um e outro “causo” (e havia os mais
escabrosos) fazia-se um silêncio respeitoso, que servia a dois propósitos,
sucessivamente: num primeiro momento ruminava-se a história contada, que, se
bem-sucedida (não me recordo de relatos insossos, pois eram quase todos
materialmente bons, e os ruins calhavam serem propostos pelos mais eloqüentes)
deixaria os ouvintes em um nível de tensão menor que o do final do conto, porém
maior do que no seu princípio. Em seguida, puxava-se pela memória, ou pela
imaginação (as narrativas mais verossímeis são, via de regra, inventadas) algum
novo mito, mistério ou lenda urbana. Como estávamos engajados nessa atividade
já há algum tempo, naturalmente o nível de ansiedade naquela sala era
consideravelmente alto, a ponto de qualquer ruído estranho – por mais natural
que fosse – provocar calafrios até entre os menos impressionáveis. Como quando,
da cozinha, o refrigerador começou a trabalhar num desses silêncios intervalares
a que me referia. Rimos juntos, inocentes, do medo injustificado. Àquela altura
não podíamos desconfiar quão breve seria aquele momento de descontração, e com
qual facilidade nossas expressões coradas de alívio seriam consumidas pela
lividez da visão do mais puro horror.
Do pórtico, um vulto cruza com desenvoltura e rapidez toda a
extensão da porta principal pela qual observávamos sombras e nuvens dançantes à
contraluz. Os efeitos da iluminação sobre o vidro fosco e a velocidade com que
se movia contribuíram para que tivéssemos nos deparado com um vulto na melhor
acepção da palavra: aquele espectro indistinto trajava sombras! Naquele segundo
ou dois da sua aparição acreditei estar privado dos sentidos, ou pelo menos
deles duvidava em grande conta. Pensei ter sido sua única testemunha. Quisera
eu estar de fato privado deles, ou que permanecessem entorpecidos um momento
mais para não sentir o gosto amargo daquele grito agudo que se podia pegar com
as mãos. Era certo que víramos, todos, a mesma cena.
Aaaaaaaaarrrrghhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!!!!!!
(Continua...)
.