Saturday, July 01, 2006

Morte Súbita




Faleceu na véspera da final da Copa do Mundo, e a família, pouco afeita ao futebol, marcou o enterro para o mesmo horário do jogo – levando ao desespero os que, por cordialidade ou obrigação familiar, se comprometeram a prestar as últimas homenagens a Seu Jorge, o moribundo – este sim, em vida, um irascível torcedor do esporte bretão. Nos últimos tempos (não havia quem em vida pudesse desmenti-lo) vangloriava-se de ter assistido à final da Copa de 50 no Maracanã e acertado um radinho de pilhas na cabeça do bandeirinha, que corria junto à lateral do campo. Atirara, na verdade, um sapato. E errara por uns 20 metros.
Os presentes chegaram tão tristes quanto impacientes à capela do cemitério onde o corpo estava sendo velado. O céu de nuvens carregadas prometia chuva forte para breve. A intenção oculta entre os presentes era que se enterrasse logo o defunto e fossem todos assistir pelo menos ao segundo tempo no conforto dos seus lares. A família mais próxima, porém, teimava em prolongar-se nos lamentos ao que batera as botas - “Era ainda tão cheio de vida, coitado” – impacientando a ala, cada vez mais numerosa, dos que pressionavam pelo início da cerimônia.
Os primeiros pingos de chuva fizeram com que até o padre aderisse aos lobistas e ensaiasse uma benção breve ao que se curou da surdez. O primeiro tempo já estava no final quando a chuva, cada vez mais forte, inviabilizou as rápidas escapadas para tomar um ar em que se podia acompanhar um pouco do jogo no rádio, ou perguntar da partida para algum amigo via celular. Zero a zero. Alguns mais ansiosos brincavam com a alça do caixão aberto como quem bate à porta naqueles casarões antigos. “Alguém aí? Vamos, tá na hora”. A situação ia chegando a tal ponto que não havia outra alternativa senão levar Seu Jorge para o buraco o mais rápido possível. Já iam abotoar o paletó de madeira quando um relâmpago caiu junto à capela, seguido de um estrondo medonho. Com ele o dilúvio: chovia a cântaros, seria impraticável carregar o presunto até o túmulo. Ficariam ali, presos. Dentro em breve ilhados. O jogo avançava no segundo tempo e os torcedores perderam o pudor em acompanha-lo pelo rádio às vistas do morto. O padre lembrou-se do televisor na sacristia e escapuliu, sorrateiro, para acompanhar a definição da partida. A manobra não passou despercebida, e logo a saleta ficou lotada de gente. A família objetou que era uma falta de respeito que se deixasse o morto sozinho. A situação foi aconchega-lo num canto - não sem dificuldades pois o caixão mal cabia na sala.
Foi só lá pelos 30 minutos do segundo tempo que estavam todos devidamente acomodados para assistir a peleja. O clima estava animado, e cada lance do selecionado canarinho era acompanhado por “UUUUs”, vaias e aplausos. Apenas Seu Jorge esteve mais contido até então. Brasil na defesa: os torcedores batiam 3 vezes no caixão para afastar o azar. A cada ataque perdido batiam novamente, decepcionados.
Com o término do tempo regulamentar e dos acréscimos, o árbitro suíço posicionava-se para encerrar a partida no centro do campo quando um lançamento magistral, partindo da intermediária defensiva, deixou o centroavante tupiniquim na cara do gol. E na cara do gol é gol!
- GOOOOOOOOOOOOOL! – o velório explodiu em festa
- Priiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!! – não valeu.
O juíz havia apitado o encerramento na longa trajetória percorrida pela bola durante o lançamento. Assistiram todos à cena embasbacados, num silêncio sepulcral enquanto o speaker transmitia a interpretação do árbitro na jogada.
Seu Jorge ergueu-se do caixão, descalçou o sapato e o atirou com raiva e força sobrenaturais em direção ao juiz acossado pelo time brasileiro na imagem da telinha.
- Filho da Putaaaaaaaaaa!!!!!!!!
Acertou. Perderam a prorrogação.