Monday, April 09, 2007

Encontro em família


Este texto destoa dos demais publicados neste blog, pois ao contrário dos anteriores (exercícios estilísticos sem importância ou pretensão alguma senão a de entreter autor e leitor), este que agora compartilho com os que se derem ao trabalho de lê-lo é carregado de intenções as mais urgentes. Atendendo tardiamente ao conselho de Dona Julieta (uma sensitiva muito amiga de minha mãe) negligenciado por mim no passado, contarei um evento que me ocorreu nesta madrugada, e que me atormentou a alma a ponto de torná-lo público neste espaço. Minha esperança é de que, segundo a crença popular, ao narrá-lo para um número suficiente de pessoas estarei para sempre livre dessa presença que me aterroriza. Serei sucinto tanto quanto possível. Sem brincadeiras ou finais engraçados e surpreendentes, posto que com certos assuntos não se brinca. Peço-lhes a gentileza de que leiam - e se possível comentem, para eu saber que leram.
Neste domingo de Páscoa, minha avó Jandira chegou ao almoço em família trazendo consigo algumas partituras antigas que fiquei sabendo serem de autoria do seu pai, meu finado bisavô Benedito Bueno, que não cheguei a conhecer em vida. Ela insistiu para que eu as tocasse no piano, mas recusei de pronto e disse a ela que pedisse para a minha mãe. Já faz algum tempo que não sento ao teclado. Precisaria estudar as peças um pouco que fosse antes de poder executá-las. Além do mais, já era hora do almoço. Minha mãe também fez pouco causo das partituras, enciumada porque minha avó fizera questão de entregá-las primeiro a mim e não a ela.
Farei aqui um parêntesis porque não são todos que sabem da minha relação com o meu bisavô: desde que comecei a aprender piano progredi bastante rápido nas técnicas da leitura, execução e interpretação musicais. Não demorou para que em família me comparassem ao meu bisavô “Bedito” Bueno. Escutei diversas vezes, de diversas bocas: “É o espírito de Bedito que baixou, seu bisavô tocava e compunha muito bem”. Fiquei, para não escolher um termo menos honroso, intrigado com as referências constantes ao meu bisavô, posto que estudava música de madrugada, quando todos dormiam, e freqüentemente sentia-me como se observado por trás do vidro que divisava o piano do resto da casa. Conforme progredia nos estudos, a sensação estendeu-se aos outros sentidos, sem contudo estimulá-los a ponto de instigar uma percepção concreta. Bedito Bueno tinha suas músicas e compositores prediletos. Clair de Lune, de Debussy, rendia ruídos de respiração e – pasmem – nuances de um rosto por trás do vidro. Cortei a peça do repertório. Não demorou para que eu abrisse mão do repertório todo, e conseqüentemente do piano, quando, em uma tarde qualquer, vi de canto de olho que um senhor me assistia praticando uma música nova. Assumi que fosse meu pai. Mas, para minha surpresa, ele sequer estava em casa. Fecha parêntesis; os antecedentes parecem ter sido explicados satisfatoriamente, e não faço gosto em alongar-me neles.
Findo o almoço de Páscoa e a confraternização familiar, aproveitei o resto de tarde para um cochilo descompromissado que acabou por estender-se mais que o devido, roubando-me as horas do sono noturno. A noite avançava e fiquei sozinho em casa, sem qualquer passatempo que me entretivesse o suficiente para esperar que o sono voltasse. Andando pela casa, fui dar com as partituras antigas na mesa da sala.

“Sonho Desfeito (Morte de um Amor)”, música de Benedito Bueno de Camargo, letra de Carlos Hanicker.

Desperta para o passado
Vem ouvir esta canção
Nascida do coração
De quem jamais te esqueceu;
Pois saibas que eu ainda guardo
Na alma o teu retrato
Sinto ainda o espinho ingrato
De um amor que não morreu

Vem ouvir nota por nota
O canto da inspiração
Acompanhado ao violão
Pelas mãos do teu cantor;

 
A música era de 1933, dedicada às “gentis senhorinhas Adélia, Joanna, Lourdes e Odette Gardezani”. Segundo minha avó, a música originalmente fora composta e letrada em homenagem a uma namorada do meu bisavô. Findo o namoro, trocou-se a letra, o título e a dedicatória. Não sei explicar o porquê, mas um impulso fez com que, a despeito das implicações previsíveis, eu levasse a partitura ao piano. Sabia que se Bedito manifestava-se em peças clássicas, que dirá diante de uma composição própria, carregada de história e sentimentos? Era previsível que aparecesse. O que não se podia prever – e confesso, temia – era sua reação. Mas nem o medo é maior que o tédio, e àquela altura eu não tinha nada melhor para fazer senão ler um livro sobre tabagismo. Da parte de Bedito não posso saber das suas opções, suponho que fossem melhores do que as minhas. Mas que executem uma peça dele é algo, creio, bastante raro. Sim, era seguro que viria.

Achei por bem preparar o ambiente, pois sou previdente. E tradicional, pois também não sou dado a inventivas: um crucifixo, o terço e a Bíblia eram suficientes. Apaguei as luzes todas, menos uma luminária apontada para a partitura: prefiro as luzes apagadas a vê-las piscando assustadoramente. Tudo pronto, faltava tocar a peça. Como disse, estava bastante enferrujado, pois há tempos não tocava; demorou para que saísse dali alguma melodia, e os primeiros trechos vieram com muita dificuldade, além de um tanto descompassados. Com um pouco de paciência e persistência, logo consegui cobrir o estudo da peça toda, de modo que comecei a executá-la por inteiro, sem maiores trancos ou incorreções. Toquei a música uma, duas vezes inteiras (ainda errando bastante) e nada. A terceira também passou em branco. Mais aliviado do que decepcionado, já ia me levantando e desistindo da empreitada quando percebi uma sombra cruzando a extensão do vidro e parando atrás de mim enquanto a luminária piscava assustadoramente. Era o fantasma do meu bisavô. Não disse nada, tenho certeza. Mas era como se dissesse: “Toca”. Assim, seco. Para não fazer uso de adjetivos que possam me depreciar, eu diria que fiquei nervoso. E a música, que já não fluía com desenvoltura, empacava a todo instante, forçando-me a reiniciá-la a todo o momento. Notei que o fantasma impacientava-se, pois se aproximava de mim a cada novo erro. Urros, ouvi urros. As luzes ao lado acendiam-se e queimavam em seguida – o que era pior do que se ficassem apenas piscando. Fui ficando cada vez mais nervoso, e, assim, errava mais. O fantasma aproximou-se definitivamente. Não ousei encará-lo de frente, mas pelo reflexo no piano: era todo branco, brilhava suspenso no ar. Repousou suas mãos nos meus ombros, mas não houve contato. Só o frio. Reclinou a cabeça, e falou no meu ouvido. Bem baixo e pausado, sussurrando...
“Por quê você não tenta o violão?”