Tuesday, July 20, 2010

in the book



Trecho do livro em produção. Nesta passagem, um dos protagonistas está preso acusado do assassinato da avó.

O choro de um homem feito é, quase sempre, tão ou mais deprimente para quem o presencia quanto para aquele que verte as lágrimas. Caio Túlio, num último esforço de dignidade, ao menos não soluçava, nem assoava o nariz com estardalhaço – o que seria compreensível, embora depusesse contra sua força de caráter. Chorava escondido sentado no chão, com as costas apoiadas contra a parede rebocada da cela que tinha o privilégio de ocupar sozinho - denunciado apenas por um e outro soluço ou fungada mais fortes os quais fracassasse em disfarçar. No xadrez ao lado, dois ladrões de galinha, pés-de-chinelo, roncavam pesado. Compunha com eles a totalidade da população carcerária de Serrópolis.
Quer chorar, chora na cama, que é lugar quente, provocou o carcereiro apontando para o leito de concreto sem colchão, tão frio quanto o piso da cela. Não debochava com a intenção de humilhar o detento, como pareceria a qualquer espectador mais sensível. Queria puxar papo, iniciar uma conversa amistosa. A brincadeira servia para deixar claro que não se abatia com o choro de Caio Túlio a ponto de calar-se em respeito.
Não foi você, não é? Como disse? – enxugou as lágrimas na camisa encardida, surpreso porque o carcereiro nunca tivesse lhe dirigido a palavra. A sua avó, não foi você quem matou. Por que diz isso? Conheço o tipo, o dos matadores, respondeu enquanto acendia um cigarro e o trazia à boca. A fumaça espessa das baforadas desenhava figuras no ar sob o brilho da lua cheia, que invadia quadrada a escuridão do cárcere. Fui um deles, confessou, arrastando para próximo das grades o banquinho de madeira de onde vigiava os presos. Matou um homem, então? – quis saber Caio Túlio, reconfortado sem saber por quê pelo passado criminoso do sujeito com quem conversava. Homem? Quem falou em homem? Tragou forte e pôs o cigarro de lado, enjoado. Passarinho. Sabiá, pica-pau, joão-de-barro... Me deu um problema com a Justiça que nem queira saber. Posso imaginar, rebateu o empresário, enterrando a cabeça sob os braços dobrados na altura do joelho.
Bom, mas eu dizia que não foi você, retomou o assassino ecológico. O problema, seu problema, é que convencer a mim não serve de nada. Cá entre nós, até o delegado, reservado que só ele, disse ter certeza de que foi você. Não sabe como me anima, balbuciou em resposta. A maneira como te encontraram, sabe, foi muito próxima do flagrante. Além do que não existe outro suspeito. Olha, te digo como amigo, para o sistema aqui, olhou em volta como se contemplasse com o gesto a Polícia e o Judiciário por inteiro, você já foi condenado.
As lágrimas escorreram novamente pelo rosto de Caio Túlio. A conversa com o prolixo doutor Penteado não tinha sido promissora, e agora o carcereiro, em sua simplicidade, escancarava sua real situação sem rodeios ou eufemismos. Engole o choro, não estou aqui pra te animar. Aproximou um pouco mais o banquinho da cela e segredou, maroto: Vim pra te ajudar. Que bela ajuda você pode me dar. Não desdenha, homem, parece que não tem noção da enrascada em que se meteu. Noção tenho, plena, mas não me leve a mal, vai me ajudar enquanto carcereiro ou matador de passarinho? Olha, não me subestima rapaz, eu nem devia te ajudar, só o faço por justiça. E dívida. Primeiro porque estou convencido da sua inocência, e depois porque devia a seu pai, Seu Eliseo, e nunca pude compensá-lo em vida. Ajudar o filho deve servir.
(...)

Tuesday, July 13, 2010

Aeromodelo



Este é o Taranis, aeronave de combate não-tripulada e remotamente controlada, apresentada ontem pelo Reino Unido. O design e o conceito são revolucionários, o que fez com que a notícia repercutisse no mundo todo. Representantes de exércitos ao redor do globo foram surpreendidos pelo invento inglês. Correspondentes internacionais colheram declarações em off de alguns generais de alta patente:

Portugal: “Já estamos desenvolvendo o nosso modelo de longo alcance, ora pois. Só falta aumentar o tamanho do fio.”
China: “Acho que dá pra fazer em plástico."
Paraguai: “Estamos aguardando a versão chinesa”.
Brasil: “Bonito, heim... Dá pra licitar?”.
Irã: “Já estamos desenvolvendo o nosso, mas não vamos mostrar pra ninguém.”

A notícia repercutiu também entre a ameaçada classe dos pilotos de caça. O presidente da Central Única dos Pilotos Unidos (CUPILUDO), Ronald Mcdonald Douglas, classificou como um “absurdo” não se reservar espaço no avião para um cockpit com piloto, mesmo que este não dirija a aeronave. “Os pilotos precisam do emprego. Se forem demitidos vão trabalhar onde? No Esquadrão Classe A?”. McDonald foi além. Segundo ele, é preciso garantir a segurança dos acompanhantes desses aviões controlados à distância, com assentos ejetáveis e estrutura reforçada. “Todas as medidas de segurança precisam ser observadas, do contrário seria uma loucura. Também lutaremos pelo adicional de periculosidade”.
A indústria do videogame não perdeu a oportunidade, e deu seu pitaco no projeto inglês. O gerente de produto da CEGA, Todyoro Nagrana, foi objetivo: “Se ninguém mais vai morrer nas batalhas, e vai vencer quem for mais hábil no joystick, então para que construir efetivamente o avião? Dá para resolver tudo numa lan-house".

Saturday, July 10, 2010

Pedido Expresso


No Black Dog, sem direito a perguntas.

- Quanto é o cachorro-quente simples?
- 5 reais. (registra)
- E o tradicional?
- Cancelo o simples? (chama o mestre dos caixas)
- Eu não tinha pedido ainda, era só uma pergunta.
( Pedido cancelado, em silêncio registra o tradicional )
- E o simples duplo, quanto é?
- (para o chefe) Ele mudou de ideia de novo, quer o simples duplo agora. Cancela pra mim?
- ?! Mas eu não...
- 6 reais. Dinheiro ou cartão?

E depois ainda veio o lanche errado.

Tuesday, July 06, 2010

Do Fracasso

 

O filósofo Sponville escreveu que “a busca da felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo”. Deve ser verdade. Parafraseando o francês, também parece verdadeiro que o fracasso é a “segunda coisa” mais bem distribuída no mundo. Sucesso e fracasso são ditos faces de uma mesma moeda, o que de modo algum procede, porque o segundo é onipresente, enquanto, o primeiro, privilégio efêmero de alguns poucos. Juntando uma e outra frase, o pensamento e sua paráfrase, parece saltar aos olhos um pessimismo fatal. Absolutamente. Há uma falsa dicotomia entre as orações, análoga à da comparação com a moeda. A desgraça e o triunfo são ambos impostores, e não renhidos rivais. Não obstante, este último raciocínio (o da falsa dicotomia) é, além de verdadeiro, reconfortante, e, portanto, otimista - pois de outro modo seria improvável atingir a felicidade através do sucesso, e a tão bem distribuída busca resultaria no mais retumbante e universal fracasso.

O poema “Se”, de Rudyard Kipling, e seus versos expostos na entrada da quadra central de Wimbledon:

"Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.
(...)
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!"



Texto dedicado à Seleção Brasileira na África, que ao contrário da de 2006 caiu honrando a camisa.

Thursday, July 01, 2010

DDC, Distúrbio de Déficit Cultural


Em minhas últimas discussões culturais, ao trabalho e entre amigos, tenho percebido que passei a sofrer de DDC, e o quadro é sintomático: leio muito pouco, e do que leio esqueço grande parte. Invejo quem se recorda da trama e dos detalhes de romances que leu há anos. Dos filmes nos quais determinada atriz atuou. Das teorias sustentadas por x ou y filósofo.
O diagnóstico do distúrbio é nebuloso, e via de regra descamba para a subjetividade. Depende, ainda, do seu círculo de amizades e exercício profissional. Outrossim (taí uma boa palavra, mas que não quer dizer nada), aí vão alguns pointers para você diagnosticar o seu. Leia a lista e veja se você se identifica. A ANVISA adverte que duas ocorrências bastam para identificar o DDC. Três ou mais configuram Síndrome – a SDC. Pode ser o caso de se consultar na biblioteca mais próxima.

- Em uma conversa sobre cinema, você rebate o argentino “O Segredo de seus Olhos” com “Homem de Ferro 2”.
- Revisitar os clássicos, para você, é assistir Esquadrão Classe A.
- Numa discussão sobre a conjuntura econômica, sua contribuição se resume a “É, o mercado imobiliário está mesmo aquecido”. Não importa se o assunto é o mercado MObiliário.
- Paulo Skaf? É construtora?
- Quando se debatem as opiniões de articulistas, você só cita Diogo Mainardi ou Arnaldo Jabor.
- Bach, Chopin, Liszt e Schopenhauer. Quem é o estranho no ninho?
- Índio da Costa?! (Certo, esse ninguém conhece, nem o Serra)
- Lendo o livro: “Mas Alice no País das Maravilhas não era pra criança?”. Vendo o filme: “Mas como assim é em 3D e não é desenho? Aliás, não era pra criança?”
- “Eu li na Veja”.
- Twitter? Facebook? Não, obrigado. Já tenho Orkut.
- Citar a Anvisa não te soou estranho. E que diabos são pointers?

    ( Em breve a continuação do último post )